sábado, 26 de julho de 2008

A experiência do amor e do diálogo na era do MP3 player

Mês passado, eu estava fazendo a baldeação do metrô para o trem na estação Brás, quando vi um senhor perguntar para um rapaz que horas eram. Ele não ouviu e continuou andando. Tinha fones no ouvido, presos por fios finos que se perdiam no interior do seu suéter azul. Era um dia frio. O senhor ficou parado. Enfim, retornou à empreitada. Conseguiu. Tudo durou cerca de quinze segundos.

Continuei a caminhar até as escadas rolantes, sempre inoperantes, desci-as a pé e, depois de um esforço sobre-humano, deslizando com a minha mochila gigantesca entre tantos corpos, consegui me acomodar. Tirei a mochila das costas e dela o Madame Bovary da biblioteca do Centro Cultural da Vergueiro. Mesmo tendo que ler 150 páginas daquele livro até quarta-feira seguinte, mesmo tendo que refletir sobre a mudança copernicana que eu começava a operar na minha vida, mesmo sofrendo tanto, sem nunca arranjar soluções, que a reflexão é tão incapaz de encontrar, mesmo com a cabeça pesada, o coração dolorido e a boca suspirando, mesmo com tantas mazelas no mundo, mesmo sem espaço para me apoiar, mesmo com todo aquele cheiro vindo das bocas que pouco falam e dos suores de um dia de esforço, não pude deixar de pensar na inexorabilidade dos MP3s, MP4s, MP5s, iPods e tutti quanti, em nossas vidas.

Um sortudo, sentado, lia o Código da Vinci enquanto ouvia música. Uma garota dormia, com fones no ouvido. Outra, em pé, sussurrava baixinho algo que provavelmente estava sendo cantado ao seu ouvido. Um homem, de terno e gravata, uma expressão de indiferença na cara, ouvia Amy Whinehouse em som tão alto que eu podia compreender perfeitamente o que se dizia. Repentinamente, alguém põe o Creu para tocar em alto e bom som, de modo que o ambiente já barulhento por causa das acusações contra mais-valia, das reclamações sobre a CPTM, dos gritos de jogadores de baralho, das discussões sobre a fartura da mulher-melancia, das agressões domésticas, chegou ao apogeu da poluição sonora.

Os guardas passavam pelos vagões, em revista, para garantir que ninguém iria sentado no chão, que ninguém venderia algo e que os prosélitos entoassem seus cantos. Confusões: gente tirada a força, vários “sou trabalhador!” ecoavam, muitos indignados reclamavam. Ouça: “trem com destino a Calmon Viana partirá da plataforma 7 e em seguida da plataforma 6”. Olhei pela janela. Eram oito e quinze. Eu estava na plataforma 6.

Não conseguia ler. Ela, porém, tinha a vida fria de um celeiro aberto para o norte; e o tédio, aranha silenciosa, ia tecendo a sua teia na sombra de todos os cantos de seu coração...um celeiro aberto para o norte, ia tecendo, todos os cantos do seu coração...

“Senhores usuários, boa noite, esse trem parte com destino à estação Calmon Viana. Tenha uma boa viagem”.Um apito. As portas fecham-se. Alguns membros ficam presos. As portas abrem-se. Suspiros e gemidos de alívio. As portas fecham-se. Praguejos. A inexorabilidade da primeira lei de Newton se manifesta: gritos assustados ecoam pelo vagão, todos tombam para o lado. Muitas reclamações e risos. O trem parte.

Acendem-se os cigarros, a maconha passa de mão em mão e bem próxima de nossos narizes e paçocas, biscoitos, iogurtes e amendoins são expostos pelos publicitários não-registrados. “Se que tirar o cheiro de maconha da boca, é só comprar Listerine! Um real! Validade até a próxima copa do mundo!”.

E, de repente, eu preparava uma pirueta en dedans, e começava a girar, e passava a eternidade girando, enquanto todos casavam e eram assassinados e assassinavam-se e prostituíam-se e recebiam o título de doutor honoris causa... Todos bateram palmas quando um cachorro tentou pular uma cerca e bateu de cabeça nela... Um navio abria espaço no concreto da rua Pedro de Toledo e eu o comandava...

Acordei repentinamente, dando um grito. Alguém tropeçara e se agarrara à minha cintura. Voltei a ler. “Carlos sentiu-se enternecido com isso e deu-lhe um beijo acompanhado de uma lágrima. Ela, porém, estava exasperada de vergonha; a sua vontade era de espancá-lo, mas se levantou, dirigiu-se ao corredor, abriu a janela e aspirou o ar fresco, para se acalmar”.Pedi à senhora que estava sentada na minha frente que abrisse a janela. Minha voz não conseguiu transcender o Pump it.

Lembrei-me que uma vez dois garotos de uns dez anos almoçavam no Shopping D, enquanto conversavam; ambos com fones no ouvido. E das tantas vezes que conversei com alguém que tinha fones no ouvido até perceber que era insultante. E de quando falei para Alberto que ele ficaria surdo se continuasse a escutar música naquela altura e ele não me ouviu. E de quando a professora Maria Beatriz reclamou, durante uma aula sobre geradores ideais, com alguém que tentava ocultar os fones sob o capuz do casaco. E do Heron, ansioso para que seu iPod chegasse logo dos Estados Unidos.

Lembrei-me das acusações que recebia por minha falta de seriedade, por ser infantil demais, por ser obsessivo, repetitivo, enfadonho. Lembrei-me dos minutos que passei explicando algo para alguém que fazia questão de mostrar tédio ou de me cortar, na primeira oportunidade, para falar mal de alguém ou contar os causos da sua vida atribulada.

Lembrei-me de Adorno, em Educação após Auschwitz , afirmando que todos nos sentimos pouco amados, porque amamos demasiado pouco. Lembrei-me de Lacan, quando afirmara que o desejo do homem era o desejo do outro. Lembrei-me de Tiburi, que dissera que conversar também é uma forma de amar.

Voltei a ler. “Supunha-a feliz; e ela não lhe podia perdoar aquela tranqüilidade tão bem assente, aquela gravidade serena, nem a própria felicidade que lhe dava.”

O trem brecou. O cadáver de Newton levantou-se só para rir, orgulhoso. Eu disse, com a voz rouca:

- Nos tornamos, em diferentes graus, incomunicáveis...

A senhora tirou os fones do ouvido e indagou:

- O que o senhor disse?

E o maquinista:

- Essa composição aguarda liberação de sinal...

E todos, em uníssono:

- Ah....

A quinta história (Clarice Lispector)

Um texto lindo da Clarice Lispector que vale a pena ler.

.....

A Quinta história

Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.

A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.

A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranqüila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou.

A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora,um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! — essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de...” — de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo.

A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? - como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? - no vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem “adeus”, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta casa foi dedetizada”.

A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa assim: queixei-me de baratas...

quarta-feira, 23 de julho de 2008

De Dercy

"A gente vai ser feliz na porrada, a gente não tem vocação para ser infeliz."

"Ninguém tem direito à ninguém"

"Por dentro eu tenho 20 anos, por fora, a poluição estraga."

"Eu detesto essa pieguice: mais cuidado, mais educação."

"Eu não falo palavrão: eu mando você tomar no cu."

"Por maior que seja o buraco em que você se encontra, pense que, por enquanto, ainda não há terra em cima."

"Eu fiz 94 anos, mas já digo que estou com 95 para me energizar e chegar lá. Escrevam o que eu digo: eu só vou morrer quando eu quiser! Não programo morte, eu programo vida!"

""Sentei o pé nele e saí porta afora. Socorro! Esse homem me furou! Imaginei que tinha enfiado um facão e rasgado minhas tripas." (Depois de ver o sangue ao perder sua virgindade, com o cantor Eugenio Pascoal)

Salve Dercy.

Completude

Com esse texto, ganhei a 3° colocação no Concurso de Literatura Experimental do CEFET-SP.
Inicialmente, foi um trabalho de redação. Trabalhávamos descrição; a professora deu um bombom Sonho de Valsa para cada um e tivemos que descrever como o abrimos, o cheiro que sentimos, a sensação de comê-lo, etc. Essa foi a minha redação. Quando a recebi com a nota (3,5) e um "Muito Bom!", a professora Ana Lisboa disse: Nossa você realmente escreve bem, como a professora Marlena disse". E eu pensei: "Nossa, então por que será que eu não tirei nota máxima?". Chegou a época do concurso de redação, eu tava com vontade de participar, mas acabei perdendo a data de inscrição. Aí, adiaram dois dias. Digitei dois textos que tinha: esse, que se chamava Completude e outro que se chamava Amélia, mas que mudei para Apoteose. Entreguei. Um mês depois, no dia em que eu descobriria que ganhara uma bolsa integral no Etapa [choro litros...]), a professora veio me avisar que eu tinha conseguido o 2° e o 3° lugar no concurso. Fiquei feliz. Saí da sala para espairecer. Nessas horas dá vontade de fazer flics... Completude ficara em 3° e Apoteose em 2°. Ganhei 90 reais em vale-livros, que gastei comprando um DVD do South Park, um do Woody Allen "Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar", Harry Potter and the Prisioner of Azkaban (versão americana, que ainda não li) e um livro do Woody Allen.
No dia da premiação, a prof. Suely (que não era minha professora ainda) me abraçou e disse: "É importante escrever, ainda mais hoje, quando a literatura não é valorizada." Quando fui escolher o livro ao qual os premiados tinham direito, a professora Maria Ângela não permitiu que eu pegasse dois. "Vai faltar para os outros". Eram quase 10 livros para 5 premiados... Peguei o Cortiço e fui embora... Aí a professora Suely me parou e perguntou: "Foi você que escreveu o da Amélia?" Ela estava com outra professora. Eu disse que sim. Ela levantou, apertou minha mão e disse que tinha partes de um verdadeiro escritor. Tempos depois descobri o quanto phodástica era ela e meu âmago bateu a cabeça num satélite de Júpiter. Quem não lembra da mão dela quando ela fala da "estrutura..." do texto? Me senti com uma grande responsabilidade na mão e resolvi escrever a sério. Mas o texto de Apoteose está perdido: perdi o arquivo e perdi o original. Procuro obsessivamente. Não achei ainda. Quando achar, eu posto. Agora, o texto.

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Completude

Do bolso aos dedos me veio o bombom, não em silêncio, mas cantando a alegre música que alegra o paladar. A cada toque, todo manhoso, continuava a letra, que falava de tentações e delícias.Na busca de sua verdadeira identidade, meus dedos, vagarosamente, foram despindo seu colorido e ilustrado traje magenta; e no final, que vergonha!, somente de roupa de baixo. A roupa amassada trazia seu cheiro, delicioso, doce odor do desejo ardente. Suas roupas íntimas, da cor do luar, eram tão finas, que se meus dedos não fossem cuidadosos, a teriam rasgado.Ah!, que constrangedor aquele momento, um silêncio prolongado... Meus dedos se aproximaram e o abraçaram... Foi perfeito. Os dedos foram feitos para o bombom e o bombom, para os dedos: um encaixe sublime, sem falhas.Os olhos, mestres dos dedos, encaravam aquela pele negra, aquela forma circular e voluptuosa. Depois de muito observar e admirar, ordenou, imperioso:
- Pegue!
Um contato cuidadoso: a cada toque sua pele parecia derreter, junto com minha moderação. Não resistindo mais, todos os membros imploravam pelo bombom.Os dedos o fizeram subir pelo ar até a boca. Agora, que dúvida! Como comê-lo? Se for rápido, me arrependerei depois; se devagar, não sentirei o prazer da mordida rápida e saborosa.Chegou o momento e nos encaramos. Iria começar o ritual, onde dois se tornam um, chegando à completude e ao prazer.Foi se aproximando e antes dele, chegou a arma que ataca o nariz, intensificando o desejo, atiçando a vontade, tirando o controle.Depois de um breve ósculo, iniciou-se o delírio. O bombom, atrevido, fazia delirar os meus dentes, minha língua, minha boca, meus sentidos, minha alma... E acabou; finalmente nos unimos.