sábado, 6 de novembro de 2010

Esboço para trabalho do Raul (2008)

Não me olhas. Diante da estante, deslizam os dedos por meus Rouquon-Macquart. Enquanto os livros prosseguem até o final da prateleira, os sapatos pretos gastos sujam meu assoalho de madeira polida com a poeira da rua.
-Não tinhas sapatos melhores?
Retiras um livro da estante. Um capítulo do inferno de Krtuchóvikh. Encaras fixamente a página, como querendo comê-la com os olhares entrecortados por movimentos vãos das pálpebras. No lusco-fusco, o céu incendeia e incendeia o lar do outro lado da rua.
-Escurece, pare de ler, estragas tua vista!...
Ries. Gostas do vestido? Achas que esta beleza atacará a todos? Que o discurso será imortalizado pelas paredes do anfiteatro?
Vem, aqui, mais perto, no espelho eu cintilo, como nas fotos que tanto amas. Não escondo, ao contrário de ti, nada nas prateleiras mais altas.
Mas sim, meu vestido farfalhará entre os corredores de cadeiras, eu me abaixarei, recolocarei meu enfeite na cabeça, tu o ajeitarás, e chorará lágrimas doces de emoção. E nos baterão palmas, jogarão flores, receberei lauréis e sairemos à francesa do recinto, antes da meia noite.
Chegaremos pela milésima vez na travessa K., tirarei tua gravata e tu, a minha, o porta-retrato cairá, o vidro se estilhaçará, sangrarei, tu coçarás o peito, arrependido de ter parido este ser torto e, depois de instantes, chorarei (mas tu não) desejoso de, novamente, encaixar os dedos em tuas órbitas.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Para voltar de vez

Ela era Sveglia. Mas eu não era e não pude suportar a ausência de sentimento. Suécia é Sveglia. Mas agora vou dormir embora não deva sonhar. Água, apesar de ser molhada por excelência, é. Escrever é. Mas estilo não é. Ter seios é. O órgão masculino é demais. Bondade não é. Mas a não bondade, o dar-se, é. Bondade não é o oposto da maldade. Estarei escrevendo molhado? Acho que sim. Meu sobrenome é. Já o primeiro é doce demais, é para o amor. Não ter nenhum segredo — e, no entanto, manter o enigma — é Sveglia. Na pontuação as reticências não são. Se alguém entender este meu irrevelado relatório e preciso, esse alguém é. Parece que eu não sou eu, de tanto eu que sou. O Sol é, a Lua não. Minha cara é. Provavelmente a sua também é. Uísque é. E, por incrível que pareça, Coca-cola é, enquanto Pepsicola nunca foi. Estou fazendo propaganda de graça? Isto está errado, ouviu, Coca-cola? Ser fiel é. O ato do amor contém em si um desespero que é. Agora vou contar uma história. Mas antes quero dizer que quem me contou essa história foi uma pessoa que, apesar de bondosíssima, é Sveglia. Agora estou quase morrendo de cansaço. Sveglia — se a gente não toma cuidado — mata. A história é a seguinte: Passa-se numa localidade chamada Coelho Neto, na Guanabara. A mulher da história era muito infeliz porque tinha uma ferida na perna e a ferida não se fechava. Ela trabalhava muito e o marido era carteiro. Ser carteiro é Sveglia. Tinham muitos filhos. Quase nada o que comer. Mas esse carteiro que se imbuiu da responsabilidade de tornar sua mulher feliz. Ser feliz é Sveglia. E o carteiro resolveu a situação. Mostrou-lhe uma vizinha que era estéril e sofria muito com isso. Não havia jeito de pegar filho. Mostrou à sua mulher como esta era feliz em ter filhos. E ela ficou feliz, mesmo com a pouca comida. Mostrou-lhe também o carteiro que outra vizinha tinha filhos, mas o marido bebia muito e batia nela e nos filhos. Enquanto que ele não bebia e nunca espancara a mulher ou as crianças. O que a tornou feliz. Todas as noites eles tinham pena da vizinha estéril e da que apanhava do marido. Todas as noites eles eram muito felizes. E ser feliz é Sveglia. Todas as noites. Eu queria chegar à página 9 na máquina de escrever. O número nove é quase inatingível. O número 13 é Deus. Máquina de escrever é. O perigo dela passar a não ser mais Sveglia é quando se mistura um pouco com os sentimentos que a pessoa que está escrevendo tem. Eu enjoei do cigarro Consul que é mentolado e doce. Já o cigarro Carlton é seco, é duro, é áspero, e sem conivência com o fumante. Como cada coisa é ou não é, não me incomodo de fazer propaganda de graça do Carlton. Mas, quanto à Coca- cola, não perdôo. Eu quero mandar este relatório para a revista Senhor e quero que eles me paguem muito bem. Como você é, julgue se minha cozinheira, que cozinha bem e canta o dia inteiro, é. Acho que vou encerrar este relatório essencial para explicar os fenômenos enérgicos da matéria. Mas não sei o que fazer. Ah, vou me vestir. (O relatório da coisa, Clarice Lispector)