Mês passado, eu estava fazendo a baldeação do metrô para o trem na estação Brás, quando vi um senhor perguntar para um rapaz que horas eram. Ele não ouviu e continuou andando. Tinha fones no ouvido, presos por fios finos que se perdiam no interior do seu suéter azul. Era um dia frio. O senhor ficou parado. Enfim, retornou à empreitada. Conseguiu. Tudo durou cerca de quinze segundos.
Continuei a caminhar até as escadas rolantes, sempre inoperantes, desci-as a pé e, depois de um esforço sobre-humano, deslizando com a minha mochila gigantesca entre tantos corpos, consegui me acomodar. Tirei a mochila das costas e dela o Madame Bovary da biblioteca do Centro Cultural da Vergueiro. Mesmo tendo que ler 150 páginas daquele livro até quarta-feira seguinte, mesmo tendo que refletir sobre a mudança copernicana que eu começava a operar na minha vida, mesmo sofrendo tanto, sem nunca arranjar soluções, que a reflexão é tão incapaz de encontrar, mesmo com a cabeça pesada, o coração dolorido e a boca suspirando, mesmo com tantas mazelas no mundo, mesmo sem espaço para me apoiar, mesmo com todo aquele cheiro vindo das bocas que pouco falam e dos suores de um dia de esforço, não pude deixar de pensar na inexorabilidade dos MP3s, MP4s, MP5s, iPods e tutti quanti, em nossas vidas.
Um sortudo, sentado, lia o Código da Vinci enquanto ouvia música. Uma garota dormia, com fones no ouvido. Outra, em pé, sussurrava baixinho algo que provavelmente estava sendo cantado ao seu ouvido. Um homem, de terno e gravata, uma expressão de indiferença na cara, ouvia Amy Whinehouse em som tão alto que eu podia compreender perfeitamente o que se dizia. Repentinamente, alguém põe o Creu para tocar em alto e bom som, de modo que o ambiente já barulhento por causa das acusações contra mais-valia, das reclamações sobre a CPTM, dos gritos de jogadores de baralho, das discussões sobre a fartura da mulher-melancia, das agressões domésticas, chegou ao apogeu da poluição sonora.
Os guardas passavam pelos vagões, em revista, para garantir que ninguém iria sentado no chão, que ninguém venderia algo e que os prosélitos entoassem seus cantos. Confusões: gente tirada a força, vários “sou trabalhador!” ecoavam, muitos indignados reclamavam. Ouça: “trem com destino a Calmon Viana partirá da plataforma 7 e em seguida da plataforma 6”. Olhei pela janela. Eram oito e quinze. Eu estava na plataforma 6.
Não conseguia ler. Ela, porém, tinha a vida fria de um celeiro aberto para o norte; e o tédio, aranha silenciosa, ia tecendo a sua teia na sombra de todos os cantos de seu coração...um celeiro aberto para o norte, ia tecendo, todos os cantos do seu coração...
“Senhores usuários, boa noite, esse trem parte com destino à estação Calmon Viana. Tenha uma boa viagem”.Um apito. As portas fecham-se. Alguns membros ficam presos. As portas abrem-se. Suspiros e gemidos de alívio. As portas fecham-se. Praguejos. A inexorabilidade da primeira lei de Newton se manifesta: gritos assustados ecoam pelo vagão, todos tombam para o lado. Muitas reclamações e risos. O trem parte.
Acendem-se os cigarros, a maconha passa de mão em mão e bem próxima de nossos narizes e paçocas, biscoitos, iogurtes e amendoins são expostos pelos publicitários não-registrados. “Se que tirar o cheiro de maconha da boca, é só comprar Listerine! Um real! Validade até a próxima copa do mundo!”.
E, de repente, eu preparava uma pirueta en dedans, e começava a girar, e passava a eternidade girando, enquanto todos casavam e eram assassinados e assassinavam-se e prostituíam-se e recebiam o título de doutor honoris causa... Todos bateram palmas quando um cachorro tentou pular uma cerca e bateu de cabeça nela... Um navio abria espaço no concreto da rua Pedro de Toledo e eu o comandava...
Acordei repentinamente, dando um grito. Alguém tropeçara e se agarrara à minha cintura. Voltei a ler. “Carlos sentiu-se enternecido com isso e deu-lhe um beijo acompanhado de uma lágrima. Ela, porém, estava exasperada de vergonha; a sua vontade era de espancá-lo, mas se levantou, dirigiu-se ao corredor, abriu a janela e aspirou o ar fresco, para se acalmar”.Pedi à senhora que estava sentada na minha frente que abrisse a janela. Minha voz não conseguiu transcender o Pump it.
Lembrei-me que uma vez dois garotos de uns dez anos almoçavam no Shopping D, enquanto conversavam; ambos com fones no ouvido. E das tantas vezes que conversei com alguém que tinha fones no ouvido até perceber que era insultante. E de quando falei para Alberto que ele ficaria surdo se continuasse a escutar música naquela altura e ele não me ouviu. E de quando a professora Maria Beatriz reclamou, durante uma aula sobre geradores ideais, com alguém que tentava ocultar os fones sob o capuz do casaco. E do Heron, ansioso para que seu iPod chegasse logo dos Estados Unidos.
Lembrei-me das acusações que recebia por minha falta de seriedade, por ser infantil demais, por ser obsessivo, repetitivo, enfadonho. Lembrei-me dos minutos que passei explicando algo para alguém que fazia questão de mostrar tédio ou de me cortar, na primeira oportunidade, para falar mal de alguém ou contar os causos da sua vida atribulada.
Lembrei-me de Adorno, em Educação após Auschwitz , afirmando que todos nos sentimos pouco amados, porque amamos demasiado pouco. Lembrei-me de Lacan, quando afirmara que o desejo do homem era o desejo do outro. Lembrei-me de Tiburi, que dissera que conversar também é uma forma de amar.
Voltei a ler. “Supunha-a feliz; e ela não lhe podia perdoar aquela tranqüilidade tão bem assente, aquela gravidade serena, nem a própria felicidade que lhe dava.”
O trem brecou. O cadáver de Newton levantou-se só para rir, orgulhoso. Eu disse, com a voz rouca:
- Nos tornamos, em diferentes graus, incomunicáveis...
A senhora tirou os fones do ouvido e indagou:
- O que o senhor disse?
E o maquinista:
- Essa composição aguarda liberação de sinal...
E todos, em uníssono:
- Ah....