segunda-feira, 15 de setembro de 2008

É para lá que eu vou (Clarice Lispector)

(Texto que tinha prometido mandar para Napoleão.)

Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é para lá que eu vou.

À ponta do lápis o traço.

Onde expira um pensamento está uma idéia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra alegria, à ponta da espada a magia - é para lá que eu vou.

Na ponta dos pés o salto. Parece a história de alguém que foi e não voltou - é para lá que eu vou.

Ou não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam mágicas. Realidade? eu vos espero. E para lá que eu vou.

Na ponta da palavra está a palavra. Quero usar a palavra “tertúlia” e não sei aonde e quando. À beira da tertúlia está a família. À beira da família estou eu. À beira de eu estou mim. É para mim que eu vou. E de mim saio para ver. Ver o quê? ver o que existe. Depois de morta é para a realidade que vou. Por enquanto é sonho. Sonho fatídico. Mas depois - depois tudo é real. E a alma livre procura um canto para se acomodar. Mim é um eu que anuncio. Não sei sobre o que estou falando. Estou falando de nada. Eu sou nada. Depois de morta engrandecerei e me espalharei, e alguém dirá com amor meu nome.

É para o meu pobre nome que vou.

E de lá volto para chamar o nome do ser amado e dos filhos. Eles me responderão. Enfim terei uma resposta. Que resposta? a do amor. Amor: eu vos amo tanto. Eu amo o amor. O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes. Mas são verdes tão escuros que na fotografia saem negros. Meu segredo é ter os olhos verdes e ninguém saber.

À extremidade de mim estou eu. Eu, implorante, eu a que necessita, a que pede, a que chora, a que se lamenta. Mas a que canta. A que diz palavras. Palavras ao vento? que importa, os ventos as trazem de novo e eu as possuo.

Eu à beira do vento. O morro dos ventos uivantes me chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto.

Oh, cachorro, cadê tua alma? está à beira de teu corpo? Eu estou à beira de meu corpo. E feneço lentamente.

Que estou eu a dizer? Estou dizendo amor. E à beira do amor estamos nós.

7 comentários:

Fernando disse...

Será então esta a poesia em prosa pela qual eu tinha perguntado?

Percebi as rimas e a sonoridade.

Marian disse...

Ah...isso me lembra que eu tenho que colocar a Clarice Lispector na minha lista de "Dos quais tenho inveja mortal".

Marian disse...

que comentário enigmático o seu no meu blog.

Marian disse...

principalmente a parte do olhar míope.


XDDD
(eu realmente sou míope. literalmente. e acho que metaforicamente também.)

Fernando disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fernando disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fernando disse...

(caramba, errei 2x, mas vamos lá - desta vez definitivamente:)

Essa citação do Borges acerca dos animais e sua divisão é estupefante, se não hilária!

Você a havia me mostrado em uma das aulas de projeto. E eu pensara: quão absurdo!(e agora penso: e quem disse que a "nossa" classificação moderna é mais acurada, hã? Será que também não o pensavam os povos "de antanho"?...)

Cada qual mais moderno que o outro. E todos a se esquecer que a história se repete, e o ciclo se fecha, tal qual o anel de benzeno...(não importante o que me digam historiadores, ham ham...)